terça-feira, 10 de maio de 2011

TEATRO-DEBATE EM LA REINA

O teatro-debate é uma modalidade de trabalho teatral, derivada do teatro espontâneo, proposto originalmente por Jacob Levy Moreno. Moreno é mais conhecido pela criação do psicodrama – aliás, um desdobramento da mesma experiência teatral, em que se constatou o efeito terapêutico da encenação improvisada de conflitos existenciais, quando os sujeitos atuam, fazendo personagens que são eles próprios.

O teatro espontâneo é basicamente um teatro de improviso, sendo que o improviso deixa de ser utilizado como estratégia de treinamento de atores para constituir-se no espetáculo em si. A ausência de ensaios e de uma produção com soluções mais elaboradas muda o foco estético tradicional, passando a valorizar prioritariamente a espontaneidade, o envolvimento emocional grupal e a construção coletiva.

Nessa perspectiva, os formatos de teatro espontâneo são tão variados quanto os teatrólogos que o praticam. Alguns modelos de trabalho conseguiram um prestígio maior, são mais conhecidos e mais explorados, dado o grande número de adeptos: a dramaterapia, o playback theater, a multiplicação dramática, o teatro da platéia, e outros deles decorrentes.

O teatro-debate é uma inovação proposta por uma trupe brasileira, com sede da cidade de Campinas, a Companhia do Teatro Espontâneo. Esse grupo se caracteriza pela diversidade de formatos com que vem trabalhando ao longo de sua história de mais de 15 anos e pela disposição de experimentar novas alternativas.

O eixo de seu trabalho tem sido, historicamente, o teatro da platéia: propõe-se a todos os participantes alguns exercícios iniciais de aquecimento e, em seguida, busca-se uma história a ser encenada. Num primeiro momento, tem-se apenas o embrião do enredo, muitas vezes apenas o personagem central – o protagonista – representado por um dos membros da platéia. A história vai sendo construída e encenada simultaneamente, com a participação principalmente dos espectadores. Aos atores da trupe cumpre a tarefa de alavancar a encenação, contracenando com os atores “leigos”, facilitando-lhes a criação e estimulando-os a desempenharem seus respectivos papéis.

Nesse modelo de trabalho, é muito freqüente que os atores da trupe não sejam muito exigidos, o que gera a frustração de ficarem muito tempo no “banco de reservas”, depois de terem se dedicado bastante à preparação para atuar.

Na busca de um modelo que integrasse a participação do público com um melhor aproveitamento do potencial dos atores, chegou-se ao teatro-debate.

Propõe-se aos participantes a discussão de um tema, num primeiro momento apenas de forma oral. Na medida em que o debate vai se desenrolando, os atores da trupe o interrompem para apresentar pequenas cenas (um minuto, em média, de duração), totalmente improvisadas, através das quais se pretende estimular o aprofundamento da reflexão coletiva em curso.

Quando se fala de cenas totalmente improvisadas, isso na prática significa que os atores sobem ao palco sem saber o que vão fazer. Nenhuma idéia prévia. Uma vez no espaço cênico, atuam a partir da intuição momentânea, porém dentro de um modelo dialético (tese-antítese-síntese), em que o primeiro ator – tecnicamente o protagonista – traz uma situação qualquer, o segundo suscita um conflito e o terceiro, apontando para a relação entre os dois primeiros oferece um caminho para a solução cênica. Curiosamente, as cenas mais fortes e mais belas são aquelas em que essa instrução é seguida à risca: quando se entra no palco já com alguma idéia do que fazer, a tendência é que as cenas se empobreçam. Pelo menos, isso tem sido constatado neste tipo de teatro.

A incorporação desse modelo exige um trabalho intenso da equipe. As oficinas costumam ser semanais, quando são examinadas e criticadas as últimas atuações e se experimentam formas alternativas, estas sujeitas, por sua vez, a minuciosa análise. Nelas, procura-se explorar todo o leque de possibilidades de atuação, na linha do teatro grotowskiano, com ampla valorização do corpo e dos recursos pessoais do ator.

Durante o espetáculo propriamente dito, os atores não participam do debate verbal. Apenas acompanham o movimento do grupo, deixando-se invadir pelo clima emocional, captando de forma não-racional a dinâmica das relações. Assim, as cenas brotam do mais profundo de suas sensações e cumprem duas finalidades principais: espelhar o grupo e fazer uma síntese provisória da reflexão. O espelhamento permite ao grupo reposicionar-se em seus movimentos em torno da tarefa. A síntese favorece a transposição do debate para um novo patamar.

Ao longo da sessão, o diretor vai sugerindo que membros da platéia subam ao palco para contracenar com os atores da trupe. Com isso, os próprios participantes vão incorporando a perspectiva especular e o distanciamento crítico.

O momento culminante é quando o debate se transforma de verbal em cênico: os atores agora são todos oriundos da platéia e constróem coletivamente uma história, que vai sendo encenada no momento mesmo de sua criação. Essa história costuma ser mais longa do que as pequenas cenas que se metem no meio das falas da audiência e se constitui num verdadeiro debate cênico, que incorpora as contribuições trazidas até então e expressa o ponto a que o grupo chegou na compreensão e reflexão sobre o tema proposto.

A apresentação de teatro-debate aqui relatada ocorreu no mês de novembro de 2003, no auditório do centro cultural La Reina, em Santiago de Chile. A direção coube a Moysés Aguiar, que é o diretor da Companhia do Teatro Espontâneo. O corpo de atores foi improvisado, com a participação da trupe Impromptu, um grupo de teatro espontâneo então existente naquela cidade.

Os integrantes da Impromptu já tinham uma pequena experiência com teatro-debate. Seu então diretor já havia participado de um seminário em Campinas. Duas das atrizes participaram em Buenos Aires de apresentações da Companhia do Teatro Espontâneo. E praticamente todos eles vinham de um workshop conduzido por Moysés Aguiar, como parte do programa de pós-graduação da Universidade Mariano Egaña.

No entanto, a equipe formada para essa apresentação não tinha um histórico de trabalho conjunto, nem tampouco no formato do teatro-debate. Isso se constituiu num importante desafio.

A exigência da improvisação radical, por parte dos atores, nas pequenas cenas, é relevante, porque o timing do teatro-debate é muito específico. Se as interrupções da discussão se tornam longas, com os atores se preparando para entrar em cena, seja utilizando elementos (figurino, objetos etc.) seja procurando um acordo mínimo quanto ao que vai ser representado, isso desaquece a platéia e trunca o debate.

É importante salientar que a interação entre a trupe e os demais participantes precisa ter um equilíbrio tal que, mantendo a característica de uma experiência teatral, não se ofusque a participação da platéia.

O que fêz da experiência da La Reina um desafio à compreensão a dinâmica do teatro-debate é que os atores de Santiago, ainda que sem o investimento dos companheiros de Campinas, conseguiram imprimir ao espetáculo a mesma dinâmica e demonstrar a mesma sensibilidade que se observa nas apresentações do grupo brasileiro.

Um detalhe: as instruções a respeito da tarefa dos atores foram dadas rapidamente pelo diretor, de forma concisa, poucos minutos antes do espetáculo, numa pequena sala ao lado do auditório: não houve nenhum treino, nenhum aquecimento do grupo, a não ser esse breve encontro.

Essa situação era preocupante, uma vez que a Companhia do Teatro Espontâneo tem como observação sua, ao longo dos anos, que a unidade do grupo é fundamental para o bom andamento do espetáculo e que é preciso ter um tempo suficiente de preparação, o grupo todo junto, para entrar em cena com as roupas molhadas de suor.

O sucesso alcançado em La Reina, sem todas as condições, coloca algumas questões interessantes: qual a importância do treinamento prévio? o que faz com que o grupo aja entrosadamente? o que favorece a sensibilidade e a criatividade nesse tipo de trabalho? Talvez nem sejam questões muito novas, mas recolocadas nesse contexto têm um apelo muito especial.

Outra peculiaridade dessa apresentação foi quanto ao tema. Normalmente, no teatro-debate, é feito um anúncio prévio, de tal forma que as pessoas, quando vão ao teatro já sabem o que vão discutir. A convocatória de La Reina não teve nenhuma explicitação dessa natureza, até porque nenhum tema havia sido previamente definido. Assim, o diretor teve que introduzir na sessão, improvisadamente, uma nova fase, ou seja, uma pesquisa, junto aos participantes, para definir o assunto que gostariam de tratar através do teatro-debate.

A existência de um tema prévio influencia o planejamento do aquecimento inicial. Quando as pessoas chegam, elas ainda não estão voltadas para a tarefa que as espera, nem tampouco para atuarem em conjunto. O aquecimento constitui, por isso mesmo, um trabalho de construção da grupalidade momentânea: o direcionamento das energias para um determinado fim e a disponibilização para ações sinérgicas.

Em se tratando de um trabalho teatral, é indispensável que seja incentivada uma boa relação com o espaço, que os corpos sejam colocados em movimento, que as energias deixem de se concentrar no cérebro para encontrar novos canais de expressão, que se experimente o prazer e a importância da complementaridade, que haja uma abertura para a ficção e a fantasia e assim por diante.

No teatro-debate, os exercícios de aquecimento costumam incluir uma focalização no tema proposto. Não havendo esse tema, como foi o caso, o aquecimento foi feito sem essa referência. No entanto, o fato de a escolha ser feita no momento favoreceu, por outro caminho, a necessária concentração, dado que o tema definido retratava um interesse momentâneo de todos os participantes, tornando-os mais comprometidos com ele do que estariam com um assunto que lhes viesse de antemão.

Outro aspecto interessante foi o rumo da dramatização final. A história trazida por um dos participantes – devidamente estimulada pelo próprio ritual do teatro-debate – focalizava uma embrionária solidariedade entre pessoas de diversas nacionalidades e etnias, que estavam sendo circunstancialmente vítimas de constrangimento pontual, por razões políticas e jurídicas com as quais nada tinham a ver. Ao invés de o grupo construir um enredo que abordasse os conflitos embutidos nesse incidente, o diretor foi surpreendido por um dos membros da platéia que, interrompendo a dramatização que mal se iniciava, conclamou todos os participantes a uma expressão imediata do congraçamento coletivo e da união acima das diferenças porventura existentes entre eles. A proposta empolgou os participantes, que subiram todos ao palco, de mãos dadas numa grande roda, que assim encerrou a sessão.

No momento em que a autora da proposta irrompeu da platéia, o diretor teve um momento de desconforto. Constatou ser uma pessoa que mostrava conhecer alguns recursos performáticos utilizados no psicodrama, diferentes da orientação adotada pelo teatro-debate, que privilegia cenas com enredo, começo-meio-e-fim, centralizadas num protagonista. A proposta então trazida mudava tudo, como se a proponente lhe estivesse arrebatando o papel de diretor, oferecendo uma solução alternativa contestatória.

Os acontecimentos então se precipitaram vertiginosamente. A platéia aderiu à proposta e participou com muito entusiasmo, o que fêz o diretor concluir que esse caminho era o caminho desejado pelo grupo e que, portanto, deveria ser respeitado. Acima e a despeito da validade do modelo que pretendia colocar em prática.

Uma outra característica importante da experiência de La Reina: o diretor era o único a falar português, num grupo de cerca de 80 pessoas cuja língua nativa era o espanhol. Mesmo com o diretor arriscando expressar-se em um espanhol pobre e confuso, e entendendo apenas parte dos diálogos cruzados que ocorriam entre os chilenos, essa interação foi possível e o espetáculo aconteceu de maneira bastante satisfatória.

Esse aspecto já havia sido constatado pelo diretor, em eventos anteriores, tanto em países de língua espanhola, quanto de língua inglesa e germânica.

A comunicação que extrapola os recursos normais da linguagem falada é um dos principais dispositivos das artes cênicas em geral. O teatro, especificamente, na medida em que faz convergir linguagens utilizadas pelas diferentes formas de expressão artística, explora em profundidade esse potencial. Isso se evidencia nos vários componentes da montagem: iluminação, figurino, coreografia, cenário, sonorização etc..

No teatro espontâneo, embora se possa também recorrer a esses auxílios comunicacionais, o caráter de improvisação momentânea costuma limitar sua utilização. No teatro-debate, até o presente momento, a opção tem sido, conforme mencionado acima, pelo “teatro pobre”, ou seja, pela não exploração desses recursos complementares.

No entanto, a comunicação não-verbal tem sua presença garantida sempre. Essa é talvez uma das razões pelas quais é possível fazer teatro espontâneo ainda que haja limitações na comunicação idiomática.

Outro facilitador é que o teatro recorre necessariamente à linguagem metafórica. Ou seja, os problemas são abordados de forma indireta, através de histórias oriundas da fantasia coletiva. Ainda que, em muitas situações, o disparador da criação seja o relato de um fato da chamada vida real, o que se segue é sempre uma elaboração imaginativa. Como a matéria prima é sempre histórica, não há como fugir aos conteúdos culturais e às vivências comunitárias, que são traduzidos em personagens e tramas.

No caso de La Reina, o relato inicial era de hóspedes de um hotel que, por serem estrangeiros, foram despejados, uma vez que a legislação local atribuía a apenas alguns estabelecimentos a possibilidade de os alojarem. Estimulou-se, através da narração, o questionamento social da discriminação e a busca de uma saída coletiva, retratada na cena final. O caráter aparentemente abortivo dessa cena reflete a obviedade da solução: não há muito o que discutir, não aceitamos a discriminação e queremos uma sociedade solidária, acolhedora das diferenças.

O teatro espontâneo é hoje uma das mais importantes redescobertas como forma de expressão artística e de intervenção social. Curiosamente ele vem brotando em diversos pontos do mundo, com características locais, mas com uma impressionante simultaneidade. Nossa pequena contribuição foi o desenvolvimento do teatro-debate como um dos seus formatos possíveis.

A exploração do seu potencial é ao mesmo tempo um desafio e uma boa promessa.

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