quarta-feira, 7 de setembro de 2011

PSICODRAMA E EMANCIPAÇÃO: O LIVRO

A Escola de Psicodrama de Tietê foi, nos anos 1990,uma experiência singular no campo da educação, mais especificamente na formação de profissionais para o trabalho com grupos, com foco, como o nome o diz, no referencial psicodramático.

O psicodrama entrou no Brasil, com força, nos anos 1970, quando viveu o auge do prestigio como alternativa psicoterápica, tanto pelas facilidades econômicas representadas pela terapia grupal como pela potencia metodológica, ao trazer para o campo da saúde mental os recursos do teatro: a combinação de palavras e atos, a multiplicidade de linguagens, a mobilização das emoções estacionadas no corpo, a utilização da analogia, do símbolo e da metáfora como ferramentas de conhecimento e transformação.

A preparação de profissionais para esse tipo de trabalho, sem nenhuma tradição autóctone, foi sendo feita com aproveitamento da experiência pedagógica de outras correntes psicoterápicas, especialmente a psicanálise, dos procedimentos metodológicos importados de outros países, tudo isso enxertado numa base acadêmica e cultural à brasileira. Um verdadeiro “frankenstein” metodológico, que desembocava numa série de problemas e dificuldades praticamente insolúveis.

As várias tentativas de superar esse quadro esbarravam no peso das instituições, pouco ágeis, debilitadas por conflitos de toda ordem, à míngua de reflexões sérias e bem fundamentadas a respeito do seu papel educativo. A despeito da inegável boa vontade de seus gestores e operadores.

Foi quando surgiu a Escola de Tietê, como uma proposta ousada de experimentação metodológica, disposta a romper com alguns dogmas e tabus então vigentes, alem de apostar num jogo político arriscado, com características de rebeldia e contestação da ordem estabelecida.

O princípio era bem simples: ensinar psicodrama utilizando recursos psicodramáticos.
Parece óbvio, mas não. Embora alguns recursos psicodramáticos estivessem até então sendo utilizados, eles se perdiam num contexto metodologicamente adverso. A visão de mundo do psicodrama oferece alguns referenciais importantes, passiveis de serem transformados em ferramentas praticas no campo da educação, que permitia sonhar com o ir mais além.

A experiência durou aproximadamente 15 anos, entre períodos de turbulência e céu de brigadeiro. Descontinuada por razões imediatas de ordem puramente econômica (o projeto não tinha capacidade de autofinanciamento), pode ser hoje avaliada por outros prismas: o cumprimento da missão institucional; as modificações no entorno, algumas delas até mesmo por ela provocadas; a precariedade das estratégias mercadológicas. Ou, quem sabe, a perda do encantamento de sua fase áurea.

Uma avaliação posterior, tomando distancia dos acontecimentos, veio mostrar que a proposta se revestia de um pioneirismo rudimentar, que se alinhava com algumas teses hoje defendidas pelos mais eminentes e prestigiados educadores. O caráter intuitivo dos recursos adotados não trazia a aura da reflexão metodológica aprofundada e sistematizada,como a encontramos nos educadores de elite contemporâneos.

De certa forma, reproduzia o estilo do próprio criador do psicodrama, Jacob Levy Moreno, que incursionava pelo desconhecido abrindo portas e janelas, sem adentrar totalmente, porem deixando-as escancaradas e disponíveis para os que viessem depois. Uma atitude que horroriza as mentes disciplinadas dos sistematizadores e dos amantes das idéias bem expostas e articuladas. Mas que impacta a realidade ao ponto de transforma-la. Profundamente. Com a vantagem de proporcionar a verificação empírica in vivo daquilo que se postula, possibilitando a avaliação crítica e a consequente reformulação, ato contínuo.

O livro recém lançado pela Editora Ágora, “Psicodrama e emancipação – a Escola de Tietê”, procura, alem de fazer o indispensável registro histórico, avaliar esse projeto, como contribuição aos educadores, aos terapeutas e aos agentes de intervenção social de qualquer natureza.

Os 30 autores foram convidados a contar o que foi a Escola, sob sua ótica pessoal. Alguns, a maioria,ex-alunos. Outros, ex-professores. Outros ainda, observadores externos. Seus textos foram adicionados “in natura”, ou seja, respeitando integralmente conteúdo, estilo, detalhamento, opiniões. Esse caleidoscópio se completa com os comentários do organizador, em cima de cada um dos textos: destaques em hiperlink remetem a considerações complementares, esclarecendo fatos, refletindo sobre eles, fazendo avaliações.

O leitor se surpreende a cada passo, deparando-se com visões distintas, novos ângulos de observação, para construir sua própria imagem a respeito do que foi a tal Escola. Algumas são mais carregadas de emoção, outras privilegiam a razão, todas elas deixam entrever preciosidades.

Mas, afinal, o que apresenta essa experiência como originalidade? Ou quais são suas características marcantes?


Emancipação dos sujeitos:
Os participantes do processo educativo, em quaisquer de suas posições ou papeis (facilitadores, estudantes, apoiadores, observadores, visitantes) são sujeitos emancipados, livres de qualquer tutela. Essa é uma concepção fundante.
O processo educativo assume, nesse caso, características de um dispositivo de facilitação para o desenvolvimento da competência no manejo dessa condição. A emancipação não é um objetivo a ser alcançado, mas sim do ponto de partida. Ou seja, ela não seria o resultado final, caso a ação educativa fosse bem sucedida, mas sim a condição sine qua non do sucesso da ação educativa.
Isso implica uma relação de horizontalidade radical, uma permanente negociação de regras e tarefas. A adesão inicial ao projeto, que já tem uma estrutura definida, com regras e objetivos previamente estabelecidos, é uma decisão feita por um sujeito emancipado, que concorda em participar da aventura, tornando-se ipso facto por ela responsável, tanto quanto os que o antecederam em sua formulação e em sua execução.

A aprendizagem como construção coletiva
O conhecimento não é transmitido por alguem que sabe mais a alguem que sabe menos. É uma busca e uma construção, empreendida em conjunto, por todos os sujeitos envolvidos no processo. Cada sujeito traz, de sua experiência anterior, o que tem e o que pode. Todos juntos trabalham no sentido de avançar, conquistando novos saberes.
Em toda ação coletiva existe a necessidade de distribuição de papeis, uma vez que nem todos os participantes fazem a mesma coisa, havendo antes um conjunto de tarefas que se intercomplementam, de forma a mais harmoniosa possível, para a composição do todo. Vale aqui a metáfora da orquestra, com seus vários instrumentos, partituras, regente, equipe de apoio.
É dentro dessa concepção que se entende o papel do educador, cujo poder não reside no saber a ser transmitido e no comando das ações dos aprendizes, mas sim na coordenação (ordenar em conjunto com) do processo. Como facilitador. Sua experiência maior no campo de conhecimento é recurso e munição colocados ao dispor do grupo (ainda que dual), oferecendo referenciais virtualmente úteis, que não se impõem como conteúdos ou formas a serem clonados. Seu poder fica, assim, sob controle da própria coletividade, em tensão permanente, em busca do equilíbrio em movimento .

A teatralidade do psicodrama
O psicodrama tem suas raizes no teatro, cujo potencial terapêutico foi descoberto e ressaltado, o que permitiu o desenvolvimento de técnicas específicas para essa finalidade. Com o tempo, entretanto, a necessidade de contar com um corpo de conhecimentos a respeito do comportamento humano foi-se impondo como ênfase, colocando na penumbra a arte propriamente dita. Vítima da pandemia da psicologização.
Dialeticamente, surgiu a necessidade de inverter as posições novamente. Na prática, isso se traduziu no resgate do teatro espontâneo como fundamento e pedra de toque para a expansão da aplicabilidade do método. É interessante notar que, embora essa orientação estivesse já presente, nos passos iniciais da Escola, ao longo do processo ela foi ganhando destaque cada vez maior, como resultado das investigações e da prática ali desenvolvida. Ao ponto de, nos anos finais, a instituição ter passado a ser designada como “Escola de Teatro Espontâneo”. E como subtítulo: “Psicodrama – Sociodrama – Axiodrama”.
Pode-se entender o teatro espontâneo de duas maneiras:
a) procedimentos teatrais destinados a desenvolver a espontaneidade; ou então
b) o teatro de improviso como modalidade artística.
Essas duas abordagens foram adotadas, na Escola de Tietê, no processo de formação de psicodramistas . Inclusive de psicodramistas cuja formação acadêmica não estivesse no campo psi: engenheiros, arquitetos, sociólogos, biólogos, sanitaristas, artistas, físicos, administradores, porque todos podem, em tese, apropriar-se de recursos das artes cênicas para incrementar seu papel profissional.

Currículo rizomático
A definição prévia do campo do conhecimento e dos objetivos a serem alcançados é, sem dúvida, uma necessidade fundamental para a formulação de qualquer projeto educativo.
A tradição manda estabelecer uma grade curricular compatível com esse campo e com esses objetivos: quais são os conteudos que devem ser aprendidos, em que sequência e em que profundidade.
A essa concepção linear de currículo se contrapõem, entretanto, algumas alternativas, tais como
a) o currículo circular: pode-se iniciar o processo em qualquer ponto, passando por todos os demais até a ele retornar;
b) o currículo em espiral: passa-se pelo mesmo ponto várias vezes, cada uma delas em nível mais alto ou mais aprofundado; e
c) o currículo rizomático: cada ponto abordado lança ramificações, que não podem ser previamente definidas.
A forma rizomática implica que a curiosidade e a necessidade do sujeito concreto é que vão determinar o caminho a ser percorrido. Apesar do risco, em tese, de eventual desvio na finalidade do processo (no nosso caso, por exemplo, era aprender psicodrama), o currículo rizomático permite potencializar a aprendizagem, como decorrência do principio de que o sujeito só aprende quando o conhecimento é significativo para ele: quanto mais significativo, mais se aprende.
Podem ficar de fora alguns conteudos que, em tese, seriam necessários? Conceitos, regras, fórmulas, técnicas, definições, nomenclaturas, ocorrências... quanta coisa o sujeito deveria aprender e não aprendeu? Sim. O currículo rizomático, porem, parte do reconhecimento de uma realidade sobejamente sabida pelos educadores: o fato de um determinado conteúdo ser abordado em aula não garante que ele vai ser assimilado, porque só se assimila aquilo que faz sentido, aquilo que se conecta com uma base anterior cognitiva e principalmente afetiva.
Assim, torna-se mais econômico e eficaz respeitar a realidade concreta do sujeito concreto. Se ele desenvolve sua autonomia – e esse é um dos objetivos educacionais – pode buscar, por conta própria, quando necessário, o conhecimento que eventualmente lhe tenha faltado. É dispensável nossa tutela e nosso controle sobre o seu saber: esse é o postulado da educação emancipadora.

Atividades integradas
Em vez de disciplinas, previamente definidas como áreas de conhecimento a serem visitadas, a estrutura era construída em termos de atividades: vivencias psicodramáticas dirigidas por professores, vivencias psicodramáticas dirigidas por alunos, laboratórios, processamentos, seminários teóricos, supervisões. Todas elas deveriam ser articuladas entre si, respondendo à realidade do que se estava vivendo e procurando atender as necessidades e curiosidades emergentes.
Para garantir essa integração, os professores atuavam em duplas, com um coordenador e um assistente. O assistente de uma atividade coordenava a atividade seguinte, assistido por um professor que não havia participado da atividade anterior. Assim, a sequencialidade era garantida, porque o coordenador de uma atividade sempre estivera presente na atividade anterior.
Com isso, se pretendeu evitar a fragmentação do ensino, muito comum nas estruturas curriculares tradicionais. Identificar as demandas concretas e facilitar o processo de integração da experiência é a principal missão do educador, que não pode simplesmente despejar informações, passando por cima das emoções, deixando o estudante à mercê de uma eventual e hipotética integração futura, solitária, de todo esse conteúdo. Aprender a integrar conhecimentos é mais importante do que obte-los em quantidade.

Grupo aberto
A adoção do currículo rizomático permite que o grupo seja constituído por pessoas com diferentes níveis de conhecimento a respeito do objeto em pauta. Assim como as crianças costumam fazer perguntas que deixam os adultos embasbacados, os estudantes “novatos” encostam os “veteranos” na parede, questionando conhecimentos supostamente consolidados e estabilizados.
Nessa perspectiva, adotamos a rotatividade na composição do grupo, com um fluxo constante de entradas e saídas. Era possível começar o curso a qualquer momento, assim como interrompe-lo e retornar mais tarde, quando fosse o caso. Estabeleceu-se uma carga horária (360 horas) que representava o compromisso mútuo entre a Escola e o estudante: cumprida integralmente, o estudante era considerado “formado”, quando então se desligava do curso . Dessa forma, o grupo de estudantes se renovava a cada encontro de trabalho.
Desenvolveu-se, como decorrência, uma nova cultura de matrização da identidade do aluno da Escola: gente nova não é problema, é oportunidade. Gente que se vai é vitória, o luto não é tão dolorido. Ganhar e perder se incorpora ao cotidiano, sem traumas. As repercussões dessa nova abordagem da dinâmica grupal se traduzem num incremento da flexibilidade na construção das relações socioafetivas.

Imersão (quase) total
As aulas aconteciam num fim de semana intensivo, de sexta a domingo, 18 horas mensais de trabalho. Os estudantes se alojavam em quartos coletivos e faziam suas refeições nas dependências da Escola. Esse modelo comportou ajustes pontuais em diferentes momentos, mas era a referência adotada.
Originalmente, a imersão foi concebida como um recurso para facilitar a participação de pessoas que residiam em diferentes cidades e precisavam viajar até o local das aulas, fugindo das tensões das grandes cidades.
O potencial pedagógico se revelou ao longo do processo, uma vez que o compartilhamento de intimidades funciona como amálgama, facilitando a construção da grupalidade. Até mesmo os aspectos supostamente negativos das idiossincrasias alheias acabavam contribuindo, em sentido positivo, para esse processo.
O sentido de coletividade veio mostrar-se uma das condições mais importantes para o tipo de relação ensino/aprendizagem que se estava desenvolvendo. Funcionava como um colchão afetivo, abrindo caminhos para o apoio mútuo, para a derrubada de barreiras, para tornar mais suave o revelar-se e, como consequência, o aprender.

A vivência psicodramática como núcleo
É conversando que a criança aprende a falar. Mesmo as regras gramaticais vão sendo incorporadas pouco a pouco, no cotidiano. As aulas de língua pátria apenas oferecem um aprimoramento, um alinhamento reflexivo com a erudição.
Por que o aprendizado do psicodrama – ou de outros conteúdos de natureza semelhante – deveria seguir o caminho contrário? O projeto da Escola era de tentar reproduzir, tanto quanto possível, o caminho da natureza. Assim, fazia-se psicodrama praticamente o tempo todo. Com pausas para meditação coletiva, nas quais se procurava analisar o que havia acontecido, para compreender a prática, para apropriar-se do seu potencial.
Optou-se por descartar a hipótese de uma vivência simulada, ou seja, era psicodrama para valer, mesmo. Uma parte das sessões eram coordenadas por professores, o que implicava o acesso dos estudantes a variados estilos de direção. Outras sessões eram dirigidas pelos próprios alunos, que experimentavam os diferentes papeis da equipe técnica.
O fato de não ser uma simulação permitia que fossem trazidos à baila problemas reais e não fictícios: conflitos da vida pessoal, tensões da convivência, vinculação com fatos externos, asas à fantasia criativa e à experimentação. Com tudo isso, a pergunta que pairava no ar era: quais os limites entre a terapia e a prática educativa? Estariam os alunos se submetendo a uma psicoterapia, sem serem consultados se queriam ou não aqueles “terapeutas”? Não estaria a Escola invadindo sua privacidade, criando situações constrangedoras?
A experimentação permitiu conhecer limites espontâneos, não prescritos por reguladores externos, supostamente mais sábios que as pessoas concretas que ali se encontravam. E cada vez mais se borravam as distinções entre educação e terapia: toda terapia é um processo educativo e toda educação é terapêutica. Caso contrário, a terapia não é plenamente terapêutica, nem tampouco a educação cumpre seu papel de educar.
O conceito chave é o potencial transformador de ambas as intervenções. Que só se viabiliza quando leva em conta sujeitos concretos – e não patologias ou incompetências. Fazendo psicodrama, o sujeito se transforma como pessoa e, assim, incorpora o método para utiliza-lo como multiplicador.

Reflexão crítica corajosa
O processamento técnico e teórico das sessões psicodramáticas era uma das ferramentas mais importantes da proposta pedagógica, implicando que a atuação tanto dos professores quanto dos alunos estaria sempre na berlinda, sendo revista, avaliada, compreendida, questionada, pensada, integrada, abrindo o leque de sentidos e de alternativas.
O processamento consiste em revisar, depois de cada atividade, todos os lances, empregando altenadamente diferentes ângulos de abordagem. A curiosidade dos estudantes dá o tom da discussão, na qual se procura compreender o sentido – ou melhor, a gama de sentidos – de cada detalhe: as motivações, os sentimentos envolvidos, os dilemas enfrentados, os titubeios, o processo de decisão, as possíveis leituras teóricas e, como coroamento, as alternativas para atuação em hipotéticas situações semelhantes.
Como todos se expõem, esvaziam-se os pudores, tornando possível apreender a realidade de que a virtuosidade da atuação se constrói principalmente pelo reconhecimento das imperfeições, dos titubeios, das escorregadelas, dos pontos cegos, das confusões, dos devaneios, das improvisações nem sempre bem sucedidas.
Era curioso notar que, a cada oportunidade que se oferecia para algum tipo de atuação (dirigir, fazer papeis em cena, discutir, relatar) sempre se podia contar com disponibilidades voluntárias, levando inclusive à necessidade de um controle institucional que garantisse oportunidades mais equânimes para todos os estudantes.

CONCLUSÃO
Essas são, em linhas gerais, as diretrizes pedagógicas adotadas pela Escola de Tietê. O que elas tem em comum com o psicodrama, enquanto proposta de intervenção terapêutica?

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o psicodrama não se pretende exclusivamente psicoterápico, no sentido tradicional. Ele tem pretensões maiores, que se materializam no sociodrama, enquanto terapêutica para grupos (não psicoterapia em grupo, mas o grupo como sujeito da intervenção), no axiodrama, como terapêutica para a coletividade mais ampla, no roleplaying enquanto recurso para desenvolvimento de habilidades específicas, no teatro espontâneo como produção artística (a arte pela arte). Essa abrangência está implícita no projeto da Escola.
Além da valorização da ação e da concretização de fantasias e sentimentos, outro eixo da proposta psicodramática é o reconhecimento e instrumentação da responsabilidade , direta e indireta, de todos os atores, pelo que acontece em qualquer situação de vida. Esse principio foi adotado tanto para a psicoterapia (todos são terapeutas), como para a pesquisa (todos são pesquisadores), como para as intervenções comunitárias (responsabilidade compartilhada) e, no caso específico da educação: todos os sujeitos envolvidos, em todos os papeis considerados, são educadores.
A experiência da Escola de Tietê foi uma tentativa de colocar tudo isso em prática. O livro conta, criticamente, essa história.

O POTENCIAL DO FAZER ARTÍSTICO

Tradicionalmente, a arte tem sido considerada como um componente fundamental da cultura e é dentro desse âmbito que costuma ser examinada e valorizada. Quando associada à educação, é vista como um complemento opcional, uma espécie de enfeite de bolo. Quando associada ao trabalho social, uma espécie de entretenimento, cujo principal benefício é impedir que pessoas propensas ao mal enveredem por caminhos indesejáveis. Ou ainda, quando frequenta os espaços terapêuticos, uma forma de comunicação preliminar à verdadeira e completa comunicação, que seria o relato e a interpretação verbais. E mesmo assim, em todos esses casos, apenas algumas formas específicas de arte acabam sendo consideradas. Quando se fala em arteterapia, por exemplo, a referência é limitada ao uso instrumental das artes plásticas, quando não exclusivamente pictóricas. Esse quadro, propositadamente caricato (caricatura é arte, também), é apenas um reconhecimento preliminar de terreno. O tema destas considerações sugere uma reflexão mais ampla, não somente para reavaliar o sentido da arte como também para incrementá-la, supondo que se identifique, nesse processo, um potencial razoável para alguma coisa importante. Quem sabe, mesmo, até possa encontrar um lugar mais privilegiado dentro de nossas ocupações e preocupações. Para tentarmos algum avanço, proponho que empreendamos uma dissecção do próprio enunciado do tema. Comecemos pelo fim. Para situar o “artístico”, tomemos por empréstimo uma definição de Marcel Duchamp: “A arte é um meio de libertação, sabedoria, contemplação e conhecimento”. Ou seja, através dela estabelecemos um tipo de contato que nos permite captar intuitivamente alguns aspectos da realidade que dificilmente – para não dizer nunca, uma afirmação perigosa - seriam alcançados por outras modalidades de busca. O que denomino “intuitivamente”, tanto tem a ver com o conceito bergsoniano da consciência não mediada pela razão como, principalmente, com as possibilidades abertas pelas contribuições da física quântica. A desconstrução das formas racionais (no dizer de Moreno, das conservas culturais) de abordagem de uma dada situação nos permite fundir-nos nela, como postula Martin Buber ao descrever a relação eu-tu. Dessa caos-fusão (co-fusão, confusão) saimos com uma nova forma, um novo “objeto” que vai imediatamente povoar os mundos material, imaterial, sensorial. O surgimento desse “objeto”, sua mera presença, desencadeia a necessidade de um reequilíbrio do sistema, necessidade não menor do que a determinada pelo próprio processo criativo em si (independente do produto e da qualidade dita estética por este apresentada). “Fazer artístico”: fazer arte não é o mesmo que consumi-la. É bem verdade que algumas obras de arte são impactantes, mobilizam no “espectador” uma gama de sentimentos muito próximos daqueles vivenciados pelo seu “autor”. Embora não desprezível, a “impactabilidade” é um aspecto menos relevante no campo da arte. A profundidade maior é alcançada na situação em que o próprio sujeito faz o mergulho desreferenciado e produz sua própria obra. É imprescindível ressaltar que o fazer artístico não é apanágio das elites. A crônica histórica nos informa a respeito do mecenato da cultura aristocrática, que estimulava (e ainda estimula) a produção artística com o objetivo de consumi-la. Como se faz com outro tipo de “cultura”, a de alimentos: planta-se para ter o que comer. Essa valorização dos trabalhos produzidos pelos cortesãos, trabalhos que hoje habitam os museus, acabou gerando a ideia de que apenas os gênios conseguiriam fazer coisas realmente belas. Nessa perspectiva, a arte não erudita seria algo de segunda categoria, tema para antropólogos, folcloristas e excêntricos estudiosos da cultura popular. A arte do povo, para ser consumida, precisaria ser burilada e depurada, condição para que alcançasse um lugar no pódio. Os assim chamados “primitivistas” chegaram lá. A verdade porém é que o fazer artístico integra o cotidiano da vida humana. O belo está sendo reiteradamente perseguido, buscado e criado. A mera arrumação diária de uma casa mobiliza o senso estético e dispara a criatividade. O mundo “kitsch” traduz uma visão de mundo transformada em objetos que “enfeitam” a vida das pessoas – ainda que taxados de mau gosto pelos cultores da produção elitizada. Um dos aspectos mais relevantes e curiosos do fazer artístico é o seu caráter trans-pessoal: tomo este termo emprestado aos místico-holísticos para referir-me ao fato de que, ainda que operados por indivíduos, os “procedimentos” artísticos são gerados no caldo de cultura da coletividade humana, indissociável do contexto “gaia” no qual ela se insere. Ou seja, ainda que a obra não seja diretamente produzida por muitas “mãos”, ela o é indiretamente, como um canal de manifestação de uma realidade cuja amplitude alcança o infinito. Holograficamente. Daí que a arte possa ser considerada sempre universal, em qualquer de suas manifestações. Essa potência expressiva é potencializada (a redundância é aqui intencional) quando consideramos as obras diretamente produzidas por “muitas mãos”. As catedrais são exemplos dessa fantástica criatividade, em que cada artista ou equipe se encarrega de uma parte da obra, criando o seu próprio detalhe, de acordo com sua peculiar sensibilidade e talento, aplicando recursos estéticos singulares, sem qualquer coordenação homogenizadora. Mesmo havendo um projeto global, concebido pela mente de um artista específico, o próprio fato de a construção consumir anos, décadas, por vezes séculos, implica modificações e acréscimos, recurso a novas tecnologias e a novas interpretações. O resultado final acaba sendo fruto de um trabalho conjunto, que expressa não apenas um corte histórico, mas principalmente um percurso vital. Menos pretensiosas, as sessões de teatro espontâneo estão na mesma linha. Diretores, atores e público convergem num processo de produção que culmina numa obra que expressa, de forma contundente, a realidade social e humana analógica e metaforicamente sintetizada nas histórias inventadas e representadas. A “potencialidade “do fazer artístico está implícita nas considerações acima. Quando reconhecemos, validamos e estimulamos a criatividade artística, em qualquer de suas modalidades, constatamos, na prática, o quanto de conhecimento e de transformação ela proporciona. Conhecimento que não pode ser engessado nem descrito pelas formulações racionais, pois vai muito além delas. Transformação rizomática que não pode ser mapeada ou quantificada, para desespero dos avaliadores que se pretendem “objetivos”. O fazer artístico nos possibilita a comunhão em torno do empoderamento, individual e coletivo ao mesmo tempo. É como se fosse um rito eucarístico, no qual descobrimos que sabemos e podemos muito mais do que as forças de controle social dizem que sabemos e podemos. Ficamos mais fortes contra a manipulação ideológica. Reconhecemos com mais segurança o terreno onde pisamos. Superamos o rebaixamento da autoestima, os sentimentos de inferioridade e de culpabilidade. Apropriamo-nos do nosso verdadeiro valor. É verdade que existem outras formas de alcançar esse empoderamento. O próprio conhecimento científico, a revelação religiosa, o autoconhecimento terapêutico, a magia não ilusionista, o transe quimicamente induzido, os exercícios místicos, a exploração dos mistérios, quantos caminhos não tem inventado o homem nessa incessante e interminável busca! A beleza está na humilde e respeitosa aceitação da diversidade, sem abrir mão da veemente e assertiva afirmação da singularidade. O fazer artístico implica, segundo o pensamento psicodramático, uma articulação de duas perspectivas aparentemente paradoxais, mutuamente exclusivas, no que diz respeito ao tempo. A proposta do psicodrama tem como objetivo desenvolver a espontaneidade e a criatividade. A diferenciação entre esses dois vetores não tem merecido, em nosso campo do saber, uma abordagem aprofundada. O mais comum é encontrarmos, na literatura, o nome composto espontaneidade-criatividade, para designar um fenômeno único. Quando, entretanto, examinamos a questão do ponto de vista do tempo, constatamos a existência, entre os dois, de uma diferença fundamental. A espontaneidade é a afirmação do tempo. Colocados diante de situações concretas, onde somos chamados a atuar, temos que levar em conta todos os elementos que integram cada uma delas. Esses elementos constituem os dados de que necessitamos para formular uma solução específica para um problema específico. É essa especificidade essa que valida os pré requisitos clássicos, originalidade e adequação. Ora, o tempo é um desses elementos a serem considerados. Aqui e agora, é o jargão utilizado para definir essa exigência. Só que o tempo, nesse caso, implica mais coisas. O ritmo é uma delas. Para responder à especificidade do momento, é preciso que o fazer se caracterize por um ritmo que se harmonize com o contexto ou que, ao romper com ele, impulsione a transformação pertinente. O tempo espontâneo implica também uma duração específica. O aqui e agora não se confunde com a duração de uma dramatização ou de uma sessão de psicodrama. Nem tampouco com uma fração teoricamente indivisível e irredutível de uma sucessão considerada. Pode ser uma temporada, um ciclo histórico, um mandato, o intervalo entre o início e o fim de uma tarefa, e assim por diante. Não pode ser espontâneo o ato que não leva em conta essa dimensão temporal. Nos comentários que fez acompanhar “As palavras do pai”, Moreno sugere uma definição de momento como uma unidade experiencial, um recorte de intensidade, que tem a ver com nosso envolvimento e comprometimento com uma dada situação de vida. Esse é o tempo da espontaneidade. Já a criatividade implica exatamente o oposto: a negação do tempo. A metáfora da fênix nos ajuda a compreender isso: a ave imortal renasce das cinzas. As cinzas são o resíduo de materiais destruídos pelo fogo, que perderam nesse processo toda a sua identidade original. Para criar é preciso passar por esse processo, abrir mão de todas as referências com as quais nos estruturamos na vida: identidades e dignidades, saberes e emoções, ideologias e paradigmas, conceitos e categorias com os quais organizamos a experiência e construimos a realidade. Entre essas referências queimadas está o tempo: imergimos numa totalidade atemporal. Não existe sequer o que se poderia chamar de contemporaneidade, ou sincronicidade, nem supressão nem fusão da linha do tempo. Ela simplesmente deixa de existir. Só então é possível emergir com o novo. Esse fenômeno foi descrito e denominado, entre nós, por Devanir Merengué, como o “estar fora de si terapêutico”. Pensamento que se alinha com os fluxos nômades do inconsciente, tomados como referência para a multiplicação dramática. Que por sua vez tem importantes correlatos na teoria do caos, na relação eu-tu de Buber, no conceito de crise vital de Fernández Mouján, no “tempo líquido” de Bauman, na revolução da teoria quântica. E aí nos deparamos com o grande paradoxo da vida. Para criar, precisamos abrir mão do tempo, enquanto categoria organizadora da experiência, e estar em estado de espontaneidade, onde o tempo é uma das referências fundamentais. Esse estado de espontaneidade, no qual atualizamos todas as referências, seria condição que nos permitiria dar o passo seguinte, que é nos despojarmos que toda referência, inclusive a temporal. É quando criamos uma nova realidade, com novas referências. Outro paradoxo é aquele que está sintetizado no tema deste congresso. Tempo para o tempo. Tempo para o potencial do fazer artístico, que é tempo para o não tempo. É preciso abrir oportunidade para o potencial do fazer artístico, em meio ao cipoal da vida cotidiana, em que o fazer artístico costuma ser visto como um mero luxo. Tempo para esse potencial significa abertura de oportunidade, em meio à pletora de informações da era cibernética, superando a passividade corporal e mental induzida pela cultura internético-televisiva. Tempo para esse potencial significa abertura de oportunidade, através do rompimento com a ideologia do fácil, pasteurizado e confortável , do que vem pronto e basta consumir. Num momento em que o psicodrama exercita seus músculos para responder às exigências da investigação científica, tanto na condição de objeto e como de ferramenta de pesquisa, também é preciso tempo para o potencial do fazer artístico, que é uma alternativa a essa fonte do saber. Mesmo correndo o risco de cair no exagero, podemos afirmar que o fazer artístico potencializa as condições para o acolhimento da diversidade tanto de saberes como de fontes do saber. A conferir.