quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O POTENCIAL DO FAZER ARTÍSTICO

Tradicionalmente, a arte tem sido considerada como um componente fundamental da cultura e é dentro desse âmbito que costuma ser examinada e valorizada. Quando associada à educação, é vista como um complemento opcional, uma espécie de enfeite de bolo. Quando associada ao trabalho social, uma espécie de entretenimento, cujo principal benefício é impedir que pessoas propensas ao mal enveredem por caminhos indesejáveis. Ou ainda, quando frequenta os espaços terapêuticos, uma forma de comunicação preliminar à verdadeira e completa comunicação, que seria o relato e a interpretação verbais. E mesmo assim, em todos esses casos, apenas algumas formas específicas de arte acabam sendo consideradas. Quando se fala em arteterapia, por exemplo, a referência é limitada ao uso instrumental das artes plásticas, quando não exclusivamente pictóricas. Esse quadro, propositadamente caricato (caricatura é arte, também), é apenas um reconhecimento preliminar de terreno. O tema destas considerações sugere uma reflexão mais ampla, não somente para reavaliar o sentido da arte como também para incrementá-la, supondo que se identifique, nesse processo, um potencial razoável para alguma coisa importante. Quem sabe, mesmo, até possa encontrar um lugar mais privilegiado dentro de nossas ocupações e preocupações. Para tentarmos algum avanço, proponho que empreendamos uma dissecção do próprio enunciado do tema. Comecemos pelo fim. Para situar o “artístico”, tomemos por empréstimo uma definição de Marcel Duchamp: “A arte é um meio de libertação, sabedoria, contemplação e conhecimento”. Ou seja, através dela estabelecemos um tipo de contato que nos permite captar intuitivamente alguns aspectos da realidade que dificilmente – para não dizer nunca, uma afirmação perigosa - seriam alcançados por outras modalidades de busca. O que denomino “intuitivamente”, tanto tem a ver com o conceito bergsoniano da consciência não mediada pela razão como, principalmente, com as possibilidades abertas pelas contribuições da física quântica. A desconstrução das formas racionais (no dizer de Moreno, das conservas culturais) de abordagem de uma dada situação nos permite fundir-nos nela, como postula Martin Buber ao descrever a relação eu-tu. Dessa caos-fusão (co-fusão, confusão) saimos com uma nova forma, um novo “objeto” que vai imediatamente povoar os mundos material, imaterial, sensorial. O surgimento desse “objeto”, sua mera presença, desencadeia a necessidade de um reequilíbrio do sistema, necessidade não menor do que a determinada pelo próprio processo criativo em si (independente do produto e da qualidade dita estética por este apresentada). “Fazer artístico”: fazer arte não é o mesmo que consumi-la. É bem verdade que algumas obras de arte são impactantes, mobilizam no “espectador” uma gama de sentimentos muito próximos daqueles vivenciados pelo seu “autor”. Embora não desprezível, a “impactabilidade” é um aspecto menos relevante no campo da arte. A profundidade maior é alcançada na situação em que o próprio sujeito faz o mergulho desreferenciado e produz sua própria obra. É imprescindível ressaltar que o fazer artístico não é apanágio das elites. A crônica histórica nos informa a respeito do mecenato da cultura aristocrática, que estimulava (e ainda estimula) a produção artística com o objetivo de consumi-la. Como se faz com outro tipo de “cultura”, a de alimentos: planta-se para ter o que comer. Essa valorização dos trabalhos produzidos pelos cortesãos, trabalhos que hoje habitam os museus, acabou gerando a ideia de que apenas os gênios conseguiriam fazer coisas realmente belas. Nessa perspectiva, a arte não erudita seria algo de segunda categoria, tema para antropólogos, folcloristas e excêntricos estudiosos da cultura popular. A arte do povo, para ser consumida, precisaria ser burilada e depurada, condição para que alcançasse um lugar no pódio. Os assim chamados “primitivistas” chegaram lá. A verdade porém é que o fazer artístico integra o cotidiano da vida humana. O belo está sendo reiteradamente perseguido, buscado e criado. A mera arrumação diária de uma casa mobiliza o senso estético e dispara a criatividade. O mundo “kitsch” traduz uma visão de mundo transformada em objetos que “enfeitam” a vida das pessoas – ainda que taxados de mau gosto pelos cultores da produção elitizada. Um dos aspectos mais relevantes e curiosos do fazer artístico é o seu caráter trans-pessoal: tomo este termo emprestado aos místico-holísticos para referir-me ao fato de que, ainda que operados por indivíduos, os “procedimentos” artísticos são gerados no caldo de cultura da coletividade humana, indissociável do contexto “gaia” no qual ela se insere. Ou seja, ainda que a obra não seja diretamente produzida por muitas “mãos”, ela o é indiretamente, como um canal de manifestação de uma realidade cuja amplitude alcança o infinito. Holograficamente. Daí que a arte possa ser considerada sempre universal, em qualquer de suas manifestações. Essa potência expressiva é potencializada (a redundância é aqui intencional) quando consideramos as obras diretamente produzidas por “muitas mãos”. As catedrais são exemplos dessa fantástica criatividade, em que cada artista ou equipe se encarrega de uma parte da obra, criando o seu próprio detalhe, de acordo com sua peculiar sensibilidade e talento, aplicando recursos estéticos singulares, sem qualquer coordenação homogenizadora. Mesmo havendo um projeto global, concebido pela mente de um artista específico, o próprio fato de a construção consumir anos, décadas, por vezes séculos, implica modificações e acréscimos, recurso a novas tecnologias e a novas interpretações. O resultado final acaba sendo fruto de um trabalho conjunto, que expressa não apenas um corte histórico, mas principalmente um percurso vital. Menos pretensiosas, as sessões de teatro espontâneo estão na mesma linha. Diretores, atores e público convergem num processo de produção que culmina numa obra que expressa, de forma contundente, a realidade social e humana analógica e metaforicamente sintetizada nas histórias inventadas e representadas. A “potencialidade “do fazer artístico está implícita nas considerações acima. Quando reconhecemos, validamos e estimulamos a criatividade artística, em qualquer de suas modalidades, constatamos, na prática, o quanto de conhecimento e de transformação ela proporciona. Conhecimento que não pode ser engessado nem descrito pelas formulações racionais, pois vai muito além delas. Transformação rizomática que não pode ser mapeada ou quantificada, para desespero dos avaliadores que se pretendem “objetivos”. O fazer artístico nos possibilita a comunhão em torno do empoderamento, individual e coletivo ao mesmo tempo. É como se fosse um rito eucarístico, no qual descobrimos que sabemos e podemos muito mais do que as forças de controle social dizem que sabemos e podemos. Ficamos mais fortes contra a manipulação ideológica. Reconhecemos com mais segurança o terreno onde pisamos. Superamos o rebaixamento da autoestima, os sentimentos de inferioridade e de culpabilidade. Apropriamo-nos do nosso verdadeiro valor. É verdade que existem outras formas de alcançar esse empoderamento. O próprio conhecimento científico, a revelação religiosa, o autoconhecimento terapêutico, a magia não ilusionista, o transe quimicamente induzido, os exercícios místicos, a exploração dos mistérios, quantos caminhos não tem inventado o homem nessa incessante e interminável busca! A beleza está na humilde e respeitosa aceitação da diversidade, sem abrir mão da veemente e assertiva afirmação da singularidade. O fazer artístico implica, segundo o pensamento psicodramático, uma articulação de duas perspectivas aparentemente paradoxais, mutuamente exclusivas, no que diz respeito ao tempo. A proposta do psicodrama tem como objetivo desenvolver a espontaneidade e a criatividade. A diferenciação entre esses dois vetores não tem merecido, em nosso campo do saber, uma abordagem aprofundada. O mais comum é encontrarmos, na literatura, o nome composto espontaneidade-criatividade, para designar um fenômeno único. Quando, entretanto, examinamos a questão do ponto de vista do tempo, constatamos a existência, entre os dois, de uma diferença fundamental. A espontaneidade é a afirmação do tempo. Colocados diante de situações concretas, onde somos chamados a atuar, temos que levar em conta todos os elementos que integram cada uma delas. Esses elementos constituem os dados de que necessitamos para formular uma solução específica para um problema específico. É essa especificidade essa que valida os pré requisitos clássicos, originalidade e adequação. Ora, o tempo é um desses elementos a serem considerados. Aqui e agora, é o jargão utilizado para definir essa exigência. Só que o tempo, nesse caso, implica mais coisas. O ritmo é uma delas. Para responder à especificidade do momento, é preciso que o fazer se caracterize por um ritmo que se harmonize com o contexto ou que, ao romper com ele, impulsione a transformação pertinente. O tempo espontâneo implica também uma duração específica. O aqui e agora não se confunde com a duração de uma dramatização ou de uma sessão de psicodrama. Nem tampouco com uma fração teoricamente indivisível e irredutível de uma sucessão considerada. Pode ser uma temporada, um ciclo histórico, um mandato, o intervalo entre o início e o fim de uma tarefa, e assim por diante. Não pode ser espontâneo o ato que não leva em conta essa dimensão temporal. Nos comentários que fez acompanhar “As palavras do pai”, Moreno sugere uma definição de momento como uma unidade experiencial, um recorte de intensidade, que tem a ver com nosso envolvimento e comprometimento com uma dada situação de vida. Esse é o tempo da espontaneidade. Já a criatividade implica exatamente o oposto: a negação do tempo. A metáfora da fênix nos ajuda a compreender isso: a ave imortal renasce das cinzas. As cinzas são o resíduo de materiais destruídos pelo fogo, que perderam nesse processo toda a sua identidade original. Para criar é preciso passar por esse processo, abrir mão de todas as referências com as quais nos estruturamos na vida: identidades e dignidades, saberes e emoções, ideologias e paradigmas, conceitos e categorias com os quais organizamos a experiência e construimos a realidade. Entre essas referências queimadas está o tempo: imergimos numa totalidade atemporal. Não existe sequer o que se poderia chamar de contemporaneidade, ou sincronicidade, nem supressão nem fusão da linha do tempo. Ela simplesmente deixa de existir. Só então é possível emergir com o novo. Esse fenômeno foi descrito e denominado, entre nós, por Devanir Merengué, como o “estar fora de si terapêutico”. Pensamento que se alinha com os fluxos nômades do inconsciente, tomados como referência para a multiplicação dramática. Que por sua vez tem importantes correlatos na teoria do caos, na relação eu-tu de Buber, no conceito de crise vital de Fernández Mouján, no “tempo líquido” de Bauman, na revolução da teoria quântica. E aí nos deparamos com o grande paradoxo da vida. Para criar, precisamos abrir mão do tempo, enquanto categoria organizadora da experiência, e estar em estado de espontaneidade, onde o tempo é uma das referências fundamentais. Esse estado de espontaneidade, no qual atualizamos todas as referências, seria condição que nos permitiria dar o passo seguinte, que é nos despojarmos que toda referência, inclusive a temporal. É quando criamos uma nova realidade, com novas referências. Outro paradoxo é aquele que está sintetizado no tema deste congresso. Tempo para o tempo. Tempo para o potencial do fazer artístico, que é tempo para o não tempo. É preciso abrir oportunidade para o potencial do fazer artístico, em meio ao cipoal da vida cotidiana, em que o fazer artístico costuma ser visto como um mero luxo. Tempo para esse potencial significa abertura de oportunidade, em meio à pletora de informações da era cibernética, superando a passividade corporal e mental induzida pela cultura internético-televisiva. Tempo para esse potencial significa abertura de oportunidade, através do rompimento com a ideologia do fácil, pasteurizado e confortável , do que vem pronto e basta consumir. Num momento em que o psicodrama exercita seus músculos para responder às exigências da investigação científica, tanto na condição de objeto e como de ferramenta de pesquisa, também é preciso tempo para o potencial do fazer artístico, que é uma alternativa a essa fonte do saber. Mesmo correndo o risco de cair no exagero, podemos afirmar que o fazer artístico potencializa as condições para o acolhimento da diversidade tanto de saberes como de fontes do saber. A conferir.

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