quarta-feira, 4 de maio de 2011

EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS DE TELE E TRANSFERÊNCIA

A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS DE TELE E TRANSFERÊNCIA

Uma das vertentes do pensamento psicodramá¬tico brasileiro se caracteriza pela recusa a conside¬rar o psicodrama como mera técnica a ser utilizada dentro de outro referencial teórico que não lhe seja próprio.
Não acredito que haja aí nenhuma espécie de sectarismo, mas um movimento que deve ser entendido a partir de uma perspectiva histórica e sócio-cultural, que não nos cabe, por ora, discutir.
Essa característica deve, entretanto, ser levada em conta, se se pretende compreender, como é o nosso caso, neste momento, a direção que assu¬miu a pesquisa a respeito de um conceito e a res¬peito do fato que ele pretende descrever.
É justamente por aí que se explicam as dificulda¬des na abordagem do fenômeno que o criador do psicodrama houve por bem designar como tele.
Que fenômeno é esse? Em que circunstâncias ocorre? Que tem ele a ver com o cotidiano de nossa prática? Em que medida sua compreensão nos ajuda a iluminar nossa tarefa?
Numa primeira fase do desenvolvimento do psi¬codrama no Brasil, Moreno foi tomado como uma espécie de bíblia, sendo suas afirmações citadas e repetidas ipsis verbis, da mesma forma como algumas seitas evangélicas costumam referir-se, entre nós, às palavras encontradas nos textos sagrados do cristianismo.
Transformando-as num padrão estereotipado de linguagem, acaba veiculando, acriticamente, uma visão do mundo que nada tem a ver com o uni¬verso dentro do qual essas palavras foram criadas.
Dentro desse contexto, tele foi tomado, pelo ân¬gulo de uma epistemologia objetivista, como o termo capaz de designar uma qualidade do fenô¬meno perceptual, segundo a qual o percepto se assemelha ao objeto.
Em outros termos, isso significaria - como se ouve e se lê amiúde - a capacidade de “ver o outro como ele é”.
Nesse sentido, o conceito poderia, de certa forma, ser compatibilizado com a idéia de que tele seria o oposto de transferência, fenômeno este que con¬sistiria em impregnar o percepto de características mais próprias do sujeito que do objeto.
São várias as restrições a essa forma de aproxima¬ção teórica.
Uma delas tem a ver com a própria natureza da percepção: sendo o percepto, necessariamente, o produto de fatores do sujeito e do objeto, não há como imaginar-se, senão como uma espécie de absoluto patológico, um percepto constituído exclusivamente de fatores subjetivos.
O mesmo quanto ao seu oposto, qual seja, aquele que se formaria às custas tão somente de fatores objetivos.
Tele, nesse caso, não existe: a transferência, en¬quanto saturação do percepto com elementos subjetivos, pertence à natureza mesma do fenô¬meno perceptual.
Nada de novo, portanto, em princípio, a acrescen¬tar às propostas teóricas já tradicionais, quer se atribua ou não ao fenômeno, a priori, um caráter patológico.
Outra dificuldade decorre de contradições, pelo menos aparentes, da própria formulação moreni¬ana, uma vez que se em alguns momentos ele nos autoriza a supor tele como um fenômeno de natu¬reza individual, em outros ele insiste no seu caráter relacional.
A biunivocidade do télico - que Moreno dizia ser possível inclusive mensurar através do teste sociométrico - é muito difícil de ser compatibili¬zada com a tendência a situar a quase sempre presente transferência em apenas um dos pólos da relação.
Ou seja, sempre que tele não acontece, a respon¬sabilidade costuma ser debitada a um dos parcei¬ros que, indevidamente, transferiu.
Com o ser simplista, se não bizarra, essa concep¬ção nada acrescenta, como inovação, à vertente sobejamente explicada pela psicanálise, qual seja, as articulações entre transferência e contra-trans¬ferência.
Para que se pudesse atribuir alguma especificidade ao fenômeno batizado como tele, haveria que buscá-la no seu caráter relacional e manter esse mesmo princípio ao investigar sua patologia, sob pena de se incorrer em grave equívoco epistemo¬lógico e, conseqüentemente, decretar a sua inutili¬dade.
Em função dessas incontornáveis incongruências, o conceito sofreu, e ainda sofre, em vários espa¬ços, uma tendência a ser, na prática, abandonado.
No mínimo por desuso, engordando uma abomi¬nável ideologia, disseminada entre nós, de que a teoria na prática é outra.
Outros pensadores têm preferido, inclusive, afir¬mar, desde logo, sua impertinência.
A outra alternativa que se tem oferecido é buscar, através das portas abertas pelo criador do psico¬drama, uma reelaboração do conceito que lhe restaure, se for o caso, seu valor instrumental, tanto para a construção do saber quanto para as transformações almejadas em nosso labor psico¬dramático.
O caminho começa por uma definição mais clara do objeto da ciência socionômica.
Na medida em que contratamos que esse objeto não é o funcionamento do psiquismo individual, mas sim, a articulação entre o individual e o cole¬tivo, tele deve ser considerado como um conceito que descreve um fenômeno observado dentro deste âmbito.
Por outro lado, é imprescindível que se estabeleça uma distinção entre a caracterização de um fenô¬meno e a investigação das circunstâncias em que ele ocorre: definir não é o mesmo que explicar.
Assim, remontando às primeiras inquietações de Moreno, vemo-lo diante de uma circunstância inusitada, para o seu teatro improvisado: quando
atuavam juntos, alguns atores não conseguiam um entrosamento que favorecesse a criação conjunta, embora pudessem ser considerados, individual-mente, como espontâneos.
Em outros casos, ocorria o inverso: embora pu¬dessem ser vistos como não-espontâneos, quando observados separadamente, os atores demonstra¬vam uma espécie de espontaneidade coletiva, no momento em que eram colocados numa situação que exigia complementaridade.
Podemos situar aí a caracterização do fenômeno télico e definí-lo como aquela situação em que ocorre uma espontaneidade coletiva ou, em outros termos, uma co-criação.
Estamos aqui, por enquanto, no âmbito do relacional e não do individual.
Feito isso, podemos passar a investigar as circuns¬tâncias em que ele ocorre e em que circunstâncias deixa de ocorrer.
É nesse momento que o conceito de transferência pode ter alguma utilidade.
Quando empregado na sua formulação psicanalítica originária, serviria para descrever o que ocorre ao nível de cada indivíduo em particular, envol¬vido na relação, quando não se constata a existência de tele.
Não necessariamente dentro de uma perspectiva causalista, que afirmaria que tele não ocorre por¬que um ou mais dos indivíduos em questão estão funcionando transferencialmente.
É possível pensar de forma holística e constatar que concomitantemente à não fluência da criação coletiva ocorre, a nível individual, uma transfe¬rência (sem cair na compulsão de definir o que é causa do que).
Nessa hipótese, a definição psicodramática de transferência seria um meio de acesso ao evento não-tele (talvez o único, quem sabe?).
Outra possibilidade teórica seria reciclar mais radicalmente o conceito de transferência, assimi¬lando-o ao conjunto do pensamento socionômico.
Para isso, podemos partir de um outro conceito, o de projeto dramático , segundo o qual, quando as pessoas se encontram numa relação qualquer, há um objetivo comum a ser estabelecido (“para que estamos aqui, juntos?”) e que é esse objetivo que vai estabelecer a participação de cada um, defi¬nindo, por conseqüência, os respectivos papéis.
Os papéis representariam, nesse caso, a indispen¬sável sinalização para a complementaridade dos atos de cada um dos parceiros.
Na medida em que essa sinalização seja cristali¬zada, impedindo a flexibilidade exigida por cir¬cunstâncias novas, a espontaneidade deixaria de ocorrer.
No entanto, se os parceiros se permitem reformu¬lar tal sistema de expectativas, durante a própria ação, teria curso a co-criação, ou seja, tele.
Mas se houver uma discordância dos parceiros (consciente ou inconsciente) em relação ao projeto dramático, afetando portanto a definição dos pa¬péis, estes deixarão de atender ao seu requisito essencial, que é sua complementaridade.
Enquanto tal concordância não for alcançada, a relação manterá sua característica não-télica.
Se o projeto for, ele próprio, mantido à margem de sua indispensável atualidade, com certeza a co-criação restará impedida, subordinados que esta¬rão os atos a referências alheias ao momento.
Tanto no primeiro como no segundo caso, os parceiros poderão estar sendo vítimas de um equívoco, ou seja, vivendo o projeto dramático presente como se estivessem vivendo um outro e esse fato é que caracterizaria a não-tele como transferência.
Transferência descreveria, assim, um caso particu¬lar de não-tele, perdendo entretanto sua caracte¬rística básica de nomear um fenômeno do psi¬quismo, passando a constituir-se, nessa re-concei¬tuação, um evento do campo das interrelações.
O que se poderia questionar é a vantagem de re¬definir, num contexto teórico diferente, um termo já consagrado no interior de outro referencial.
É um ônus a ser assumido, por ora, até que o desenvolvimento da teoria nos possibilite o passo seguinte, que seria nos desvencilharmos de con¬ceitos ambíguos.
Há mais uma alternativa, que é radicalizar o dis¬curso, reconhecendo o usucapião psicanalítico e negando ao termo transferência um lugar dentro da teoria socionômica.
Teria a vantagem de evitar novos equívocos como aqueles que Moreno favoreceu, ao tentar univer¬salizar conceitos referidos a diferentes universos de reflexão e pesquisa.
É claro que o criador do psicodrama não deve ter atinado com a confusão que estava fazendo e possibilitando; caso contrário, com certeza teria tratado de inventar um novo instrumento concei¬tual.
Parece que para ele o ideal de fraternidade falava mais alto do que o rigor teórico.
O que não nos obriga a abrir mão dos avanços possíveis e de buscar esse mesmo congraçamento pela colocação civilizada das diferenças e pelo respeito ao caminho empreendido por aqueles que escolheram projetos alternativos.

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