terça-feira, 10 de maio de 2011

O TEATRO ESPONTÂNEO COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

O teatro espontâneo é, antes de mais nada, uma modalidade de manifestação artística.
Como tal foi proposto, na virada do século XIX para o XX, como alternativa para revitalização das artes cênicas. A proposta tinha, na ocasião, características revolucionárias, incluindo basicamente três aspectos:
- a encenação sem texto prévio e sem ensaios (o texto seria criado no momento, durante a própria encenação) ;
- uma nova maneira de encarar a relação ator-personagem (o personagem é o próprio ator, ainda que ele atue como se fosse um “outro”);
- uma nova concepção arquitetônica do espaço teatral (para permitir a ampla participação de todos).
A radicalidade era tanta que buscava atingir o âmago da alma do artista, remexendo suas entranhas, denunciando conflitos pessoais que na arte erudita da época ficariam camuflados. Daí à descoberta do seu potencial transformador seria inevitavelmente o próximo passo.
Depois de um período de adormecimento, a retomada das propostas acima vem acontecendo há pouco mais de duas ou três décadas. Simultaneamente, em várias partes do mundo, em espaços os mais diversos, a improvisação teatral vem sendo testada como um campo estético que, se não consegue vencer a barreira da hegemonia do teatro dito convencional, cada vez mais vai encontrando seu lugar.
O que impulsiona esse movimento é o fato de que todo artista se mete, com sua sensibilidade, nos desvãos do mundo real, inacessíveis aos instrumentos e rituais da ciência, da terapêutica e da religião. Ele captura fenômenos que de outra forma permaneceriam desconhecidos e faz deles a matéria prima de sua criação. É a sua maneira de assinalar e chamar a atenção para algo que, se não é totalmente desconhecido, pode passar desapercebido.
O artista é portanto um iluminador, que dirige o foco para um determinado ponto, deixando na penumbra a realidade circundante. Sem negá-la, sem desvirtuá-la, sem decompô-la, sem violentá-la: apenas fazendo um destaque, para promover a comunicação entre sensibilidades, a sua e a do seu “inter-sensor”.
Acontece que todo conhecimento, uma vez produzido, é necessariamente transformador.
A realidade é o que percebemos. O conhecimento é um fenômeno perceptual. Se muda alguma coisa no modo como a percebemos – e um novo conhecimento é, nesse sentido, uma mudança – a realidade deixa de ser aquela que era antes, para ser uma coisa nova. Daí que nenhum conhecimento se produz sem conseqüências. Nessa perspectiva, toda busca do saber se caracterizaria como uma espécie de pesquisa-ação, ou seja, transforma a realidade no próprio ato de investigá-la.
O teatro é uma arte abrangente, que pode englobar e sintetizar praticamente todas as outras, ao serviço do contar histórias. Não apenas verbal, porém cenicamente, utilizando um conjunto de linguagens: o cenário, a iluminação, o som, a voz e o corpo do ator, o texto, a coreografia, e assim por diante. Quando feito de forma improvisada, privilegiando a construção coletiva, como no teatro espontâneo, constitui-se numa ferramenta poderosa de auto-investigação para as pessoas e comunidades que o praticam.
Ao contar histórias pinçadas da vida cotidiana ou inventar metáforas dessa mesma vida, sob a forma de enredos ficcionais, os participantes acessam, fazendo uso da intuição artística que todos nós possuimos, conteúdos vitais significativos, dificilmente alcançáveis por outra via. Uma experiência singular de construção coletiva do conhecimento via arte.
O impacto do novo saber sobre a vida das pessoas varia muito. Nem sempre é facilmente detectável. Depende de uma infinidade de fatores, inscritos na complexidade não apenas da vida humana mas de todo o planeta. Dentro, porém, dessa perspectiva da complexidade, podemos levantar a hipótese de que um encadeamento multi-direcional invisível implica que a mais insignificante produção artística pode ter conseqüências inimagináveis.
O curioso é que, em princípio, a arte pela arte se funda no mero desejo de criar, de expressar algo, na busca do gozo estético. Se desencadeia mudanças, isso é mera decorrência, que nem sempre está nos planos do artista. O saber artístico não é suscetível de ser utilizado para produzir resultados planejáveis, como acontece em geral com o saber cientifico.
Assim, no plano da arte, é impossível prever as consequencias. Isso pode ser considerado como uma vantagem, porque do ponto de vista ético, ela ficaria imunizada contra o vírus da manipulação. Embora não se possa negar que a história nos brinda com vários exemplos de tentativas de influenciar, através das artes, os rumos da coletividade.
Com as garantias acima referidas, tem-se proposto o teatro espontâneo em várias situações que poderiam ser, em termos genéricos, caracterizadas como de crise social. Momentos cruciais na vida política, descompensações sociais iminentes ou em curso, impasses éticos, crises comportamentais, interações doentias, são temas e motivos para um teatro espontâneo. Situações menos criticas, porém importantes para as comunidades, pedem uma ação integradora – faça-se um teatro espontâneo.
Em todos esses momentos, ao contar suas experiências de vida e encenar suas histórias, os participantes deixam entrever seus conflitos, seus dilemas, seus valores, seus desejos, suas crises. A atuação coletiva em busca de uma solução inovadora no plano metafórico, para tornar mais bela a história que se representa, acaba sendo um teste das possibilidades de enfrentamento conjunto dos temas de interesse comum.
O teatro espontâneo se torna, assim, um canal para expressar aquilo que a sensibilidade identifica, para fazer ouvir uma voz que não quer calar.
No plano social, esse potencial vem sendo aproveitado cada vez mais, no trabalho com grupos e comunidades, nas mais diferentes situações. Na verdade, onde quer que se tenha um grupo, cabe um teatro espontâneo, no mínimo para promover a própria grupalidade, para potencializar seus objetivos.
Tudo depende, é verdade, como já foi dito, das intenções com que é proposto.
Há um risco, por exemplo, de transforma-lo em instrumento de proselitismo religioso ou político. Brecht e Boal não fazem segredo de suas intenções. Seu teatro político inclui alguns elementos do teatro espontâneo, justamente como ferramenta de discussão de temas relacionados com a opressão e com o poder, de conscientização, a partir de alguns pressupostos ideológicos claramente assumidos.
É bem verdade que a forma como se utiliza uma ferramenta sempre tem a ver com o modo de pensar de quem a toma nas mãos. Assim, é impossível fazer assepsia ideológica, o que entretanto não nos exime de refletir sobre suas implicações.
A ética/estética social do teatro espontâneo é a da solidariedade, entendida não como filantropia nem como altruísmo, porém como co-responsabilidade: estamos todos no mesmo barco, se o barco afundar morremos todos. Assim, estabelece-se, de partida, uma horizontalidade das relações. Não há uma hierarquia, seja ela do saber, do descortínio ou do poder. Sem vanguardismos.
Assim, mesmo que o teatro espontâneo seja praticado como ferramenta de intervenção social, como arte aplicada, ele fica mais próximo de suas características enquanto arte. Sua proposta é que os participantes todos vivam juntos uma experiência de co-criação artística.
Claro que pode haver efeitos desejados: a integração grupal e comunitária, a ampliação da solidariedade e da capacidade de autogestão da vida em comum, a liberação da espontaneidade-criatividade e o conseqüente prazer de criar, a descoberta de novas possibilidades de fazer coisas em conjunto e de construir o conhecimento como bem coletivo e não individual.
Mas o mero afrouxamento dos nós da trama social e o ganho em liberdade de movimentação não representam nenhuma garantia de que o processo social vai tomar este ou aquele rumo, que possa ser previamente estabelecido. É uma opção de risco e de confiança.
Com efeito, o teatro espontâneo é uma aposta na capacidade humana de se auto-regular e se auto-determinar. Nesse caso, as responsabilidades ficam distribuídas entre todos, não havendo necessidade de que aqueles que propõem a intervenção assumam o lugar dos demais sujeitos (sujeitos são todos, na verdade). Esse é um dos eixos do conceito de cidadania.
Mesmo no teatro convencional, a idéia prevalente durante séculos, de que o palco (dramaturgo-diretor-equipe-atores) conta uma história para a plateia, vem sendo substituída pela convicção de que o palco responde ao público, estabelecendo com ele um diálogo, com mensagens que vão e voltam, em ambas as direções.
Essa é a postura básica do teatro espontâneo, em que se constrói coletivamente o espetáculo, cada parte contribuindo com o que tem e pode, dando o melhor de si, com seu potencial potencializado na relação com os parceiros. Para o teatro espontâneo, o que importa é que cada um desenvolva sua capacidade de buscar aquilo que precisa, respondendo pelo que encontra, criando soluções originais, ainda que se valendo à exaustão dos recursos existentes e disponíveis.
Na verdade, o teatro espontâneo é uma experiência educativa, na concepção atual do bom processo educacional: não se aprisiona o sujeito num saber predefinido, antes se facilita seu desencarceramento para um saber imprevisível. A experiência de construção coletiva abre-lhe os horizontes: ele pode “sair para fora” por conta própria, sem que ninguém o conduza. No teatro espontâneo, o diretor mestre é um mero facilitador, que não exerce o poder pelo poder, nem está a serviço de nenhum outro poder.
A educação, como ferramenta de transformação social, visa o desenvolvimento de atitudes, e para isso é fundamental a vivência compreensiva das relações humanas, com todos os sentimentos e emoções que produzem e pelos quais são movidas (a antiga metáfora alquimista do moto-perpétuo).
Aqui, de novo, o teatro espontâneo como ferramenta de transformação social encontra seu lugar, garantindo expressão livre, propiciando canais adequados para isso e demonstrando, na prática, a importância de se fundamentar a vida comunitária em procedimentos solidários.

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